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A obrigatoriedade da vacinação contra a COVID-19 no Brasil: saúde pública entre direito e dever

Completando-se um ano desde o início da pandemia da COVID-19, é coerente apontar que poucas foram as pessoas que puderam imaginar a influência e a magnitude que esse evento teria no cotidiano da sociedade humana. Porém, a realidade é que não se pode dizer que não era aventada pelo meio científico a hipótese de uma nova doença infecciosa viral de origem zoonótica – sofrem mutação em uma espécie animal de forma a infectar seres humanos - ou transmitida por vetor – transportada por alguma espécie, como mosquitos ou outros insetos que, então, infectam seres humanos - espalhar-se pelo globo terrestre rapidamente.

As previsões nesse sentido – difundidas por pessoas influentes como Bill Gates -, embasavam-se nas recorrentes descobertas de novos agentes infecciosos, na perturbação do meio ambiente, na ausência de limites de fronteiras e na circulação de pessoas e mercadorias inclusive, colocando como agentes patogênicos possíveis - junto às gripes ou influenzas - algum não ainda identificado à exemplo dos causadores de síndromes respiratórias como foram a SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) e a MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio).  Tais conclusões em muito derivam de observações feitas a partir do controle de doenças como a catapora, o sarampo e a poliomielite através de vacinas, do tratamento do HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana) e do convívio com gripes e resfriados, bem como as epidemias - transmissão local rápida e desenfreada de uma determinada doença - do século XXI, como a da SARS em 2003, MERS em 2012 e os surtos de Ebola em 2014, sem contar a pandemia de Gripe A, ou Influenza A, (H1N1) em 2009.

Ou seja, um século marcado pela evolução tecnológica e pela globalização, em ritmo cada vez mais acelerado pelo mundo, apontava para a possibilidade cada vez mais eminente de uma pandemia, não obstante também demonstravam a necessidade de utilização da tecnologia para combatê-la. Com isso em mente, quando da emergência de uma infecção respiratória contagiosa em novembro de 2019, na cidade de Wuhan, a maior área metropolitana da província de Hubei, na China, e da evolução da epidemia na Ásia, para a qual não se tem antivirais efetivos, rapidamente chegou-se à conclusão de que seria necessário o desenvolvimento de uma vacina para o combate da doença.

O primeiro relatório oficial da OMS em 21 de janeiro de 2020 anunciou a existência de um novo coronavírus (2019-nCoV) e, no dia 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde declarou a existência de uma pandemia com relação a doença denominada COVID-19, já com 118.000 casos em 114 países e com 4.291 mortes, já nesse mês havia a mobilização de diversos laboratórios farmacêuticos para elaborar uma vacina eficaz contra o vírus. Tal movimento deu-se pelo mesmo motivo que incentivaram a implementação de distanciamento e isolamento social: frear a disseminação da doença.

Isso porque, diante da ausência de remédio efetivo no tratamento e cura da doença e da preferência por métodos profiláticos a fim de evitar a sobrecarga do atendimento médico-hospitalar, os dezoito meses previstos para o desenvolvimento de uma vacina demonstravam-se como a melhor opção para a preservação da saúde pública. Dessa maneira, já no final do ano de 2020, em um recorde da humanidade, já se tinham alguns laboratórios farmacêuticos produzindo vacinas com graus significativos de eficácia: nos Estados Unidos da América surgiu a Pfizer da BioNtech e a Moderna de Institutos Nacionais de Saúde do país; no Reino Unido, a Universidade de Oxford desenvolveu a AstraZeneca; na China tem-se a Sinovac-Coronavac e na Rússia a Sputnik V do Instituto Gamaleya.

Resultados como estes advieram de uma verdadeira reunião de esforços globais para a obtenção de uma vacina eficaz de maneira eficiente, sendo que cada uma das acimas citadas possui suas peculiaridades, porém são essenciais para o controle da doença. Na conclusão dos testes, órgãos de saúde de diversos países iniciaram avaliações para aprovar seu uso público e difundido, quando se chegou à segunda grande tarefa do projeto de imunização difundida: a produção das vacinas em grandes quantidades.

No Brasil, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Butantan, em conjunto com o Ministério da Saúde, trabalharam a fim de esquematizar a produção e a distribuição nacional de vacina para a enfermidade por meio do Sistema Único de Saúde. Desse modo, em janeiro de 2021, foi autorizada – inicialmente - para uso emergencial da vacina Oxford-AstraZeneca pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o qual alavancou a importação de insumos e a produção nacional de vacinas, que é a maneira mais plausível para a imunização da população de mais de 200 milhões de cidadãos brasileiros.

Ocorre que, no país, o qual é conhecido globalmente pelo seu Programa Nacional de Imunizações existente há mais de 40 anos, sendo um exemplo mundial, se questionou a Lei nº 13.979/2020, que havia sido promulgada no início do cenário pandêmico, a qual prevê a obrigatoriedade da vacinação e de outras medidas profiláticas adotadas por autoridades no âmbito de suas competências. A discussão acerca da constitucionalidade de tal texto legal culminou no ajuizamento de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, nº 6586 e nº 6587, e de um Agravo em Recurso Extraordinário, nº 1267879.

A discussão contrapõe a liberdade individual do cidadão e o direito coletivo à saúde, sendo movida pelo ceticismo disseminado sobre as vacinas e sobre a constante mudança de informações e incertezas sobre a doença. É verdade que concomitantemente ao surgimento da vacina, foram descobertas novas variantes do vírus causador da COVID-19 e que as vacinas desenvolvidas não são 100% eficazes, havendo ainda diversas dúvidas acerca de sua eficácia na não contaminação pelo vírus ainda que já comprovada sua efetividade significativa no não desenvolvimento da doença, porém essas são consideradas o melhor método para a obtenção da imunização de rebanho – ou seja, quando se diminui a quantidade de pessoas passíveis de infecção e, logo, de contágio a outras - tão necessária para o controle da doença.

Frente a isso e com base da Constituição da República Federativa do Brasil, o Supremo Tribunal Federal, julgando as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6586 e nº 6587, concluiu pela tese de que “(I) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, facultada a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade; e sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente. (II) Tais medidas, com as limitações expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência.”

Em consonância, na análise do Agravo em Recurso Extraordinário nº 1267879, fixou-se tese de repercussão geral no sentido de que “É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina [...] com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar.”

Por conseguinte, consolidou-se nacionalmente a ideia de que a vacinação não se trata apenas de um direito individual de todos, mas também de um dever coletivo para com a saúde pública, o qual não autoriza nenhuma forma de violência para sua efetivação - por isso o reforço de que não se trata de vacinação forçada –, mas que estipula ônus possíveis de serem implementados. Afinal, é importante frisar que a Organização Mundial da Saúde considera a hesitação à vacinação uma das dez maiores ameaças à saúde, sendo assim, nas palavras dos ministros da corte de vértice, a vacinação é um ato de solidariedade e a imunidade coletiva um bem público da nação que deve ser buscado através de meios necessários, adequados e proporcionais.

Por Micaela Linke
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