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As transformações da justiça brasileira com a pandemia da COVID-19.

Em um século marcado pela evolução tecnológica e pela globalização, as recorrentes descobertas de novos agentes infecciosos, a perturbação do meio ambiente, a ausência de limites de fronteiras e a circulação de pessoas e mercadorias em ritmo cada vez mais acelerado apontavam para a possibilidade de cada vez mais eminente do surgimento de uma pandemia e da necessidade utilização da tecnologia para combatê-la.

Contudo, o impacto de um evento desta magnitude não era – e talvez ainda não seja - compreendido pela população no geral, sendo uma surpresa para a maioria das pessoas o cenário a que se chegou no primeiro semestre de 2020, devido à emergência de uma infecção respiratória contagiosa em novembro de 2019, na cidade de Wuhan, a maior área metropolitana da província de Hubei, na China. A evolução da epidemia no local, resultou no primeiro relatório oficial da OMS em 21 de janeiro de 2020, no qual se anunciou a existência de um novo coronavírus (2019-nCoV) e, no dia 11 de março de 2020 a OMS declarou, para muitos já em atraso, a existência de uma pandemia com relação a doença denominada COVID-19, já com 118.000 casos em 114 países e com 4.291 mortes.

O Brasil – que já contava com casos importados desde fevereiro –, em consideração à sua extensão territorial e às desigualdades sociais que se estendem em todas as localidades, foi afetado em diferentes lugares de maneiras distintas pelo dito desastre da pandemia à luz do conceito legal compreendido no disposto no artigo 2º, inciso II, do Decreto nº 7.257 de 2010. Com isso, nacionalmente, as polarizações políticas e sociais foram exacerbadas pelas incertezas e problemas que a situação ocasiona: a crise empregatícia e econômica, a constante necessidade de adequação a novos protocolos, as dúvidas que surgem quanto à saúde e à capacidade de atendimento hospitalar com números e aferições falhas e imprecisas, a ansiedade coletiva frente às incertezas cotidianas e o impacto psicoemocional da ausência de contato interpessoal.

Dessa forma, não há setor ou lugar que não tenha sido afetado, porém nenhum deles o foi da mesma maneira, sendo as consequências imensuráveis e, ainda, pouco precisas. A certeza que se demonstra é que o país – à imagem do mundo – estará invariavelmente alterado quando da superação das atuais circunstâncias e os problemas dela advindos, com os quais já se arca no presente momento, perdurarão por alongado período de tempo.

Falando em conflitos e em um cenário crítico como o delineado, os poderes estatais são colocados sob os holofotes e o poder judiciário, em especial, foi impactado pela pandemia em todo o Brasil e permanecerá lidando com os conflitos que dela surgirem por muito tempo. O funcionamento da jurisdição nacional é exemplo de transformação impulsionado pelo cenário pandêmico e o judiciário precisará continuar se adaptando para a obtenção de êxito no desempenho de suas funções face aos litígios que aportam ao poder judiciário devido ao desastre global.

No âmbito jurídico, a necessidade de isolamento social implicou na suspensão de todos os prazos processuais e a instituição de regime de plantão extraordinário conforme Resolução 313 do CNJ, publicada em meio a outros atos no mesmo sentido em diversos locais de forma a unificar a tramitação de processos judiciais em todo o território, promovendo a segurança das pessoas atuantes nestes órgãos e garantindo a apreciação das matérias urgentes, visto que as relações jurídicas e os direitos da população permanecem sensíveis aos ônus do tempo e os jurisdicionados têm seus direitos imensamente afetados pelas circunstâncias atípicas que se tornaram parte da realidade.

Ou seja, o sistema de prestação de tutela jurisdicional brasileiro, que ainda dependia majoritariamente de locais físicos e diligências presenciais - enquanto se prepara para a alta demanda derivada do cenário pandêmico - se encontrou forçado a se reinventar e depender de ferramentas virtuais no intuito de manter o atendimento mínimo à população com o andamento dos processos eletrônicos.

 Nesse caminho, houve a retomada dos prazos processuais das lides que tramitam eletronicamente a partir de maio com a Resolução nº 314 do CNJ. No entanto, as diferenças entre as condições dos estados e cidades ao longo do território nacional, com localidades em situação de ou em iminência de lockdown, implicou também na publicação da Resolução nº 318 do mesmo órgão, que considera a ausência de homogeneidade no território nacional de forma a adaptar o andamento dos processos judiciais a essas distinções.

Com isso, dentre as incertezas que dominam e as circunstâncias críticas que compõe a realidade, resta bastante claro que o judiciário não voltará a ser o mesmo, porquanto a virtualização da jurisdição é um caminho sem volta e – ainda – necessitará transformar-se perante os litígios que aportarão à sua frente.

Toma-se o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul como exemplo, que - seguindo a tendência de outros órgãos jurisdicionais - instituiu sessões de julgamento virtuais, possibilitando a entrega de sustentações orais por vídeo. Ainda possibilitou a retirada em carga de autos por seus procuradores cadastrados para a digitalização dos processos para sua continuidade como processo eletrônico, concomitantemente à montagem de força tarefa de servidores para este fim, bem como a realização de licitação para digitalizar todo o acervo processual nos próximos anos. Ou seja, por mais que já houvesse intenções de virtualização da jurisdição, o cenário pandêmico impulsionou exponencialmente transformações formais e procedimentais que influem no acesso à justiça e na visão do judiciário perante os cidadãos diretamente.

Ademais, diante das alterações sociais e da fundada expectativa de emergência de ações individuais em massa, o judiciário e os poderes públicos desde o início dessa pandemia vem confrontando ideias no intuito de proteger o sistema de um colapso. Um exemplo é o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública, por meio da Secretaria Nacional do Consumidor – SENACON -, pelo Ministério Público Federal, pelo Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios, pela Associação Brasileira das Empresas Aéreas – ABEAR -, e pelas companhias aéreas predominantes no território nacional, a fim de possibilitar a flexibilização das regras de remarcação e de reembolso de voos operados a partir de março de 2020 até o mesmo mês do ano seguinte exceto se prorrogada a situação pandêmica ou epidêmica no Brasil além deste período.

No mesmo sentido, o direito privado como um todo está tendo de se adaptar a esta nova realidade, sendo a preocupação com os conflitos dela derivados inclusive legislativa, resultando na Lei nº 14.010/2020. Essa dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (COVID-19), suspendendo prazos, impedindo a concessão da liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo ajuizadas a partir de 20 de março de 2020 até 31 de dezembro de 2020, definindo que a prisão civil por dívida alimentícia seja cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, dentre outras disposições.

Logo, o impacto do cenário pandêmico no âmbito jurídico, tanto no direito público quanto no direito privado, é extremamente amplo e abrangente, o que não é uma surpresa haja vista que, sendo o direito reflexo da sociedade, um cenário de profunda alteração social, por decorrência lógica, reflete proporcionalmente no direito. No caso em questão, é inquestionável que o poder judiciário brasileiro está e permanecerá recebendo diversas demandas em massa e litígios complexos, afinal a crise econômica que o Brasil enfrentava tomou novas proporções diante da pandemia, de maneira que há reflexos claramente visíveis na área de recuperações judiciais e falências, e relações jurídicas pré-existentes - como regra - foram afetadas por circunstâncias consideradas não imagináveis anteriormente.

Portanto, os impactos da pandemia, amplos como são, atingiram todas as áreas do direito e da vida da população, transformando as ideias anteriormente vinculadas ao judiciário acerca de seu funcionamento presencial vinculado ao papel e à caneta em uma justiça virtualizada, o que acelera a tramitação procedimental e amplia em certos aspectos o acesso à informação e ao judiciário. Todavia, a jurisdição sentirá proximamente as demais mudanças que a sociedade enfrenta em decorrência do desastre da pandemia da COVID-19, sendo necessário pensar em alternativas para a contínua, adequada, efetiva e tempestiva prestação de tutela jurisdicional, aproveitando as transformações impulsionadas pelo cenário pandêmico para que haja o desenvolvimento de soluções de litígios sem um colapso do sistema.

Por Micaela Linke
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